JEITO BRASILEIRO DE SER ESPÍRITA - (Entrevista          concedia pela antropóloga Sandra Jacqueline Stoll, que estudou a          história e linhas de força que lutam pela hegemonia do Espiritismo no          Brasil à reporter Paula Barcellos, do                  JB Online: "Apesar de contar com 6 milhões de espíritas declarados e          outros milhões de simpatizantes, a história e a prática dessa religião          ainda não tinham transposto os muros acadêmicos. Para suprir essa          lacuna, a antropóloga Sandra Jacqueline Stoll escreveu Espiritismo à          brasileira (Edusp, 296 páginas, R$ 35), originalmente uma tese de          doutorado em Antropologia Cultural na USP. Confrontando dois personagens          fundamentais, Chico Xavier e Luiz Antônio Gasparetto, Sandra identificou          novas linhas de força da religião espírita, desde o início dividida          entre uma corrente cientificista, predominante na Europa, e outra que          privilegia o aspecto moral, hegemônica no Brasil. Nesta entrevista, ela          explica as novas divisões do espiritismo: de um lado, a ligação com o          catolicismo, expressa na aceitação voluntária, por Chico Xavier, dos          votos monásticos de pobreza e castidade. De outro, a Nova Era e a          auto-ajuda de Gasparetto, que prega a realização pessoal e o sucesso.          - O que a levou a estudar o espiritismo?
        - Eu tinha curiosidade de rever a interpretação da inserção do          espiritismo na cultura religiosa brasileira. Quando se analisam certas          tendências do campo religioso, os grupos mencionados são os católicos,          os carismáticos, os neopentecostais e os grupos afro-brasileiros. Suprir          essa lacuna foi uma das motivações dessa pesquisa. Mas havia também a          figura extraordinária de Chico Xavier, que, apesar da unanimidade          conquistada dentro e fora do meio espírita, não tinha sido ainda objeto          de pesquisa antropológica. O mesmo ocorre com outro médium de destaque,          Luiz Antônio Gasparetto. Suas pinturas mediúnicas chamaram tanto a          atenção que ele chegou a ser levado para a Inglaterra, para se          apresentar na BBC. 
- No livro, você compara a doutrina espírita          francesa, fundada por Allan Kardec, com a brasileira. Elas acabaram se          tornando religiões diferentes? Ou as diferenças são, basicamente,          resultantes de comportamentos culturais distintos?
        - A doutrina de Allan Kardec teve uma larga difusão na França, assim          como no Brasil, no século 19. Nestes dois países, porém, as          características assumidas pela doutrina não foram as mesmas. Na França,          a produção das obras de Allan Kardec tinha como tema central a teoria da          evolução. Essa era a tônica dos debates científicos e religiosos na          Europa na época. Já no Brasil, apenas em círculos sociais restritos esse          debate encontrou ressonância. Em contrapartida, o aspecto moral da          doutrina espírita foi rapidamente assimilado, por seu estreito          comprometimento com o ideário cristão. O que demonstro no livro é que          esse ideário foi aqui reinterpretado, criando-se um ''estilo católico de          ser espírita''. O médium Chico Xavier é o paradigma dessa construção.          Sua imagem pública foi construída com base na noção católica de          santidade. Isso se expressa no estilo de vida por ele adotado, marcado          pela incorporação gradativa dos votos monásticos católicos: obediência,          castidade, renúncia aos bens materiais. Traduzidas como ''sacrifício de          si'', essas práticas, juntamente à caridade, também assimilada do          universo católico, conferem ao espiritismo uma marca arraigadamente          católica, cultura religiosa dominante no país. Não se trata, porém, de          uma outra religião, já que os preceitos doutrinários do espiritismo no          Brasil são os mesmos lançados na França. 
- Isso teria acontecido apenas no Brasil?
        - Nos países em que a religião católica é dominante, a apropriação de          elementos de sua estrutura, de sua prática ritual e ideário faz parte          das estratégias de inserção de doutrinas estrangeiras. Veja como outras          religiões rapidamente se apropriam de símbolos do catolicismo para          facilitar sua inserção nas camadas populares: as figuras dos bispos,          pastores, templos, água, batismo etc. são exemplares nesse sentido. O          Brasil não foge à regra. Mas é preciso também salientar que mudanças nas          relações de poder no campo religioso podem alterar esse processo. Como          demonstro no livro, existem hoje outras correntes bastante influentes no          campo religioso. O próprio catolicismo tenta se adaptar a essas          mudanças, introduzindo, de um lado, práticas rituais que o aproximam do          pentecostalismo e, de outro, estimulando as peregrinações religiosas e o          culto aos santos ao estilo Nova Era. Isso também pode ser observado no          universo espírita: a construção de novas sínteses em que o catolicismo          não ocupa lugar central. Provavelmente, como vêm demonstrando várias          pesquisas recentes, a tendência reflete o solapamento da posição          hegemônica que o catolicismo ocupava no Brasil. 
- É inegável a importância de Chico Xavier no          espiritismo brasileiro. Pode-se dizer que sua produção literária          mediúnica legitimou a idéia de imortalidade da alma, uma das principais          teses espíritas, a ponto de ser aceita por praticantes de outras          religiões?
        - A contribuição fundamental da literatura produzida por Chico Xavier          foi certamente a popularização da doutrina espírita. Suas obras,          acompanhadas cronologicamente, permitem perceber que os temas          fundamentais do espiritismo - a idéia da imortalidade da consciência, da          evolução, do carma etc. - são introduzidos de forma gradativa,          articulando-se, especialmente nos romances, por meio do enredo de          histórias de vida. Realizado por mais de 70 anos, esse projeto          certamente contribuiu para a disseminação da idéia da imortalidade da          alma, inclusive entre os que se dizem católicos, como sinalizam várias          pesquisas acadêmicas e jornalísticas. 
- Quais seriam as principais tendências do          espiritismo brasileiro hoje?
        - O espiritismo de ''viés católico'', consolidado em torno da imagem          pública de Chico Xavier, ainda é hegemônico no Brasil, mas no interior          deste vêm sendo gestadas novas tendências. Hoje temos duas correntes          dominantes: uma, a exemplo da orientação de Kardec, vem buscando a          inovação da doutrina por meio da atualização de seus conceitos          científicos; a outra busca no campo religioso sua atualização,          incorporando idéias e práticas de sistemas filosóficos/doutrinários          diversos, precariamente reunidos em torno do rótulo de Nova Era e com          grande ênfase na auto-ajuda. A Nova Era e as novas idéias científicas          relativas às origens e evolução do universo tornaram-se as suas          principais fontes contemporâneas de inspiração. 
- Os livros de auto-ajuda têm influenciado o          espiritismo?
        - Essa é uma tendência que não se verifica apenas no Brasil. Hoje em          inúmeras livrarias da Índia, do Nepal, da Inglaterra, de Portugal, do          Chile e da Argentina, você encontra amplas seções de livros destinados à          auto-ajuda. O espiritismo no Brasil acompanha essa tendência e, diga-se          de passagem, a Igreja Católica também. Chico Xavier foi o primeiro          best-seller do campo espírita. Hoje os livros de outros médiuns, em          especial de Zíbia Gasparetto, tomaram-lhe a dianteira. Seus livros há          anos constam entre os mais vendidos. Esse sucesso, em larga medida,          explica-se por uma mudança do modelo convencional da literatura espírita          para o filão da auto-ajuda. 
- O que muda?
        - Os temas principais são os mesmos - carma, evolução, intervenção dos          espíritos etc. -, porém o alvo não é a vida futura, mas o aqui e agora.          Usando uma linguagem mais coloquial, moderna e situações do cotidiano,          essa literatura encontra ressonância especialmente entre os segmentos de          classe média, ultrapassando os limites do espiritismo. Nesse sentido,          esta literatura também contribui para a disseminação de temas          fundamentais da doutrina espírita. A diferença é que nessa literatura o          tema do livre-arbítrio ganha centralidade, enfatizado como instrumento          de ''realização pessoal'', o que permite relativizar, por exemplo, a          idéia do carma como destino inexorável. 
- Um autor como Luiz Antonio Gasparetto une          rituais mediúnicos às temáticas da Nova Era e às práticas de auto-ajuda.          Como a doutrina espírita absorve tudo isso?
        - Dizem os espíritas que Luiz Antônio Gasparetto já não é mais espírita.          Ele mesmo recusa essa denominação. O endosso de certas idéias e práticas          da Nova Era e especialmente da auto-ajuda, segundo eles, teria produzido          o seu afastamento da tradição doutrinária. Entretanto, outros grupos          fizeram o mesmo e ainda são considerados espíritas. O pomo da discórdia          na verdade é uma questão de ordem ética: trata-se da discordância dos          espíritas com relação ao uso da mediunidade para fins privados, em          especial para o enriquecimento pessoal. Aí se evidencia o modelo de          virtudes católico disseminado no espiritismo por Chico Xavier, que fez          da prática da mediunidade um exercício do voto de pobreza. Gasparetto,          ao contrário, investe por intermédio da auto-ajuda na ética do sucesso,          da prosperidade. Atua em favor do próximo, porém não por meio da          caridade, mas estimulando as pessoas a buscarem por si a felicidade, o          prazer, a realização pessoal. Ele tem tido enorme sucesso com esse          trabalho. Sustento, apesar disso, que Gasparetto continua no campo          espírita. É a partir dessa matriz que ele reinterpreta os conceitos e          práticas de outras tradições. 
- Projetos como os de Gasparetto podem conduzir          à criação de um novo espiritismo?
        - A princípio é o que ele pretendia. Mas, hoje, afirma que não é          espírita. Cada sistema religioso lida com a divergência e a dissidência          de modos diversos. Os espíritas se debateram no Brasil durante décadas          entre duas tendências, aqueles mais afinados com o discurso científico          da doutrina, e os demais sintonizados com seus valores morais. Com Chico          Xavier e seus seguidores tornou-se hegemônica a segunda corrente. Hoje          existem novas tendências, dentro do campo espírita, disputando espaço.          Não se sabe ainda qual o desfecho dessa disputa que apenas se inicia.          Mas ela, forçosamente, impõe transformações. 
- Muitas pessoas hoje se assumem como          espiritualistas. Como você definiria esse conceito?
        - Como outros conceitos, por exemplo de Nova Era ou ''neo-esoterismo'',          estes são rótulos que demarcam um campo de trocas, disputas e diálogos e          não um modo de identidade. Quem se diz espiritualista pode num dado          momento estar realizando meditação de estilo zen, freqüentar sessões de          ioga, massagem tibetana, consumir incensos, colecionar medalhas de          santos católicos. Meses depois, pode ter abandonado um ou mais destes          itens e estar envolvido numa nova síntese. Esse exercício da          espiritualidade pouco afeito a fidelidades institucionais é o que          caracteriza a religiosidade contemporânea. Talvez seja um dos principais          desafios das instituições religiosas. [28/FEV/2004 - JEITO BRASILEIRO DE          SER ESPÍRITA].
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VEJA também artigo sobre "Espiritismo no Brasil - Suas Origens" no site do Centro Espírita Ismael..
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